Internações como a de Paloma em ‘Amor à Vida’ são práticas superadas nos últimos 40 anos
Nenhuma área da medicina tem tanto apelo para a ficção como a psiquiatria. A perda da razão é tão assustadora e fascinante que está presente em incontáveis livros, filmes, peças, pinturas. E também nas novelas. Desde pelo menos A Rainha Louca, de 1967, até a internação de Carminha (Adriana Esteves), em Avenida Brasil, no ano passado, a teledramaturgia é recheada de personagens que enlouquecem ou acabam em hospitais psiquiátricos, como Félix (Mateus Solano) conseguiu fazer com Paloma (Paolla Oliveira) em Amor à Vida.
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Paolla Oliveira com Antonio Fagundes
Ao mesmo tempo, poucas áreas médicas são tão criticadas. Como no início dessa especialidade não havia muito a oferecer aos doentes, o grosso do tratamento consistia em manter as pessoas confinadas até o surto passar. O eletrochoque era um dos poucos recursos e era tão eficaz que acabava recomendado para tudo – inclusive para punir.
Vale ressaltar que, após uma reformulação nas indicações e nas diretrizes éticas para sua utilização, como uso de anestesia, hoje em dia sua eficácia e segurança são mundialmente reconhecidos, não sendo justo acusá-lo de ser antiético ou desumano. Antiético e desumano é privar pessoas do mais eficaz tratamento disponível.
Além disso, inicialmente, os diagnósticos psiquiátricos eram pouco consistentes, o que dava margem a distorções, como o uso da internação como forma de punição. A estratégia usada por Félix para internar sua irmã inspira-se diretamente nessas antigas falhas indicadas num estudo publicado em 1973 na revista Science.
Para ver se os médicos saberiam diferenciar doentes mentais de pessoas sãs, voluntários foram a hospitais dizendo estar ouvindo barulhos e acabaram internados. Mesmo se comportando normalmente, permaneceram ali por em média 19 dias, pois tudo o que faziam era interpretado como sinal de doença mental. Afinal, imaginava a equipe, eles não estariam lá se não tivessem problemas mentais, como raciocinou a médica para desespero de Paloma quando foi internada.
Embora caricata, a personagem retratou bem esse tipo de atitude em que, tendo-se decidido a priori que a pessoa é doente, passa-se a explicar tudo o que ela fala como sintoma de loucura.
É um perigo, mas temos que reconhecer que isso não é psiquiatria. Nos últimos 40 anos, muita coisa mudou. Os diagnósticos foram padronizados e ganharam consistência, a ponto de a última repórter que tentou repetir a experiência dos anos 70 não ter conseguido ser internada em nenhum hospital psiquiátrico. Felizmente a ciência avança. Às vezes mais rápido do que a ficção se dá conta.
DANIEL MARTINS DE BARROS É PSIQUIATRA, PROFESSOR COLABORADOR DO DEPARTAMENTO E DO INSTITUTO DE PSIQUIATRIA DO HOSPITAL DAS CLÍNICAS (IPQ-HC), ONDE COORDENA O NÚCLEO DE PSIQUIATRIA FORENSE (NUFOR), E COLUNISTA DO PORTAL E DA RÁDIO ESTADÃO
Fonte: Estadão
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